domingo, 20 de fevereiro de 2011

Série - Textos longos: E as linhas não sabem nadar, coitadas

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Era uma vez um comboio triste e abandonado, marcado pela cor ferrugenta na sua pele metálica. Igual tristeza e abandono eram sentidas pelas linhas que lhe traçavam o destino. A força sonora de outros tempos era substituída pelo silêncio dos campos abandonados de gente e de progresso, progressivamente… O Gigante na sua ânsia de “progresso”, dito tecnológico, dita-lhe a sorte.
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Outros familiares do comboio, mais ou menos afastados, retiram-lhe a importância. Máquinas sobre rodas em asfaltos, mais ou menos esburacados, mais ou menos portajados. Máquinas que atravessam os oceanos das baleias (e não só). Máquinas que riscam de branco os céus. Concorrentes de peso, desde plumas a pesados. Como se não bastasse, apareceu um primo ricalhaço importado de terras mais desenvolvidas. Qual emigrante bem sucedido! Até tem um nome chique resumido em três letras: TGV. Tudo obra e desgraça do Gigante, claro.
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Nos tempos que correm, por mais voltas que se dessem, lá está o modernaço, o veloz e o bonitão do TGV nas bocas do mundo, sobretudo político. Convém não esquecer as cerimónias de inaugurações virtuais, reluzentes de tanta tralha tecnológica. Parece que não há nada mais importante. Parece que não há outra forma de viajar para fora do buraco em que nos encontramos. Qual Gigante feito Adamastor! Nem que fosse para comprar uns caramelos em Badajoz… E vice-versa, para que outros possam frequentar as nossas belas praias, da linha e não só… Aos milhões! E aos milhões que a Europa nos dará de mão beijada, na forma de fundos sem fundo, para nos enterrarmos, mais ainda…
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Em contrapartida, a tanta magnificência, os outros comboios envelhecem sós e abandonados como grande parte da sociedade. Muitos quilómetros de linhas férreas ganham ervas e flores. Ao menos, a natureza dá-lhes abrigo e companhia. Tanta ingratidão humana! Até linhas históricas ficarão submergidas, nos próximos anos, por força de interesses plutocráticos do Gigante e seus cúmplices, claro. Tanta podridão humana! E as linhas não sabem nadar, coitadas.
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