Dinheiro ou palavra?
Amigos. Agosto. Verão. Calor. Praia. Tardes e noites quentes. Tardes e noites longas. Vila Nova de Milfontes. Campismo… 1991.
Eu e um grupo de amigos do bairro (mais concretamente: Bairro da Tapada, em Évora), daqueles que ficarão para toda a vida, uns mais do que outros por causa da ferrugem do tempo, pegámos nas mochilas e nas tendas e rumámos para a costa alentejana. Destino: Vila Nova de Milfontes. Destino barato (claro) e, na altura, recentemente descoberto sobretudo pela malta nova. A excitação. A inocência da primeira vez. O deslumbramento. A lição. A história de vida.
A viagem de Évora, em autocarro. Excitação. A entrada no parque de campismo. Dolorosa, ainda por cima, com o sol tórrido e implacável. Sofrimento. Montar a tenda, com os últimos e preciosos fios da luz crepuscular. A primeira vez. Nervosismo. Atrapalhação. Enfim…
As manhãs com as novas e comunitárias rotinas, desde a partilha dos balneários, das compras, do pequeno-almoço e, finalmente, das desejadas rumarias para as amareladas areias suavemente banhadas pelo rio e mar. Ou pelo mar e rio. Tanto faz! Água. Corpos molhados. Tanta gente gira!…
As tardes longas antecediam as noites longas, irmãmente. Momentos desejados. Momentos de folia. Bar na praia. Discoteca. Bebidas alcoólicas, principalmente cerveja, quanto baste. Conversas e olhares cúmplices. Tranquilamente cúmplices. Música. Dança. Cansaço. O descanso dos guerreiros e das guerreiras.
As novas rotinas que se pretendiam prolongadas, pelo máximo de tempo possível e da melhor maneira, igualmente. No entanto, o dinheiro escasso tinha de ser rigidamente gasto. Até que…
Um dia, dirigi-me, melancolicamente, à papelaria da vila onde se compravam os bilhetes para o autocarro. Espaço ínfimo para a movimentação do pessoal em busca, sobretudo, de maços de tabaco e de pedaços de papel com destinos marcados. No dia seguinte, lá voltei, alegremente, para trocá-lo. Tinha conseguido poupar mais uns escudos, em comida, que me permitiam ficar mais um valiosíssimo dia, desfrutando daquele ambiente caloroso.
O dono da papelaria, um homem na casa dos sessenta anos, de barba branca e desalinhada. Indisfarçável! E as rugas… Rugas na testa que se afundavam à medida que eu lhe dizia: Bom dia! Quero trocar o meu bilhete do autocarro para a Évora, de amanhã para depois de amanhã. Se for necessário, tenho dinheiro para pagar a diferença. Quero. Tenho. Dinheiro. A importância das palavras. O seu valor.
O meu olhar cruzou-se, novamente, com o dele. Antes um olhar relaxado. Agora, um olhar fulminante. As rugas na testa, cada vez mais profundas. A voz rouca, lapidando as seguintes e lacónicas palavras: Bom dia, jovem. Tens dinheiro ou tens palavra?
Primeiro, a perplexidade perante a rouquidão das palavras. Breves instantes. Segundos que parecem espaçarem-se até hoje. Até sempre... Por isso, marcaram-me. Depois, a compreensão do significado dessas palavras. Lacónicas. Roucas. Carregadas de sentido e gastas pelo tempo. De seguida, a vergonha perante a malta estranha e cúmplice. Por fim, a resposta inevitável, acanhada mas aprendida: Tenho palavra.
A história devida, Antena 1
sábado, 20 de fevereiro de 2010
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